quarta-feira, 25 de março de 2009
Degradação ambiental - A destruição legalizada de cavernas
Pouco se ouve falar da luta pela preservação das cavernas brasileiras. Se dependermos de quase toda a imprensa brasileira, a mudança da legislação sobre as cavernas brasileiras só será conhecida pela sociedade como fato consumado. Mas a batalha vem sendo travada nos gabinetes e corredores de Brasília. Tudo por causa do Decreto nº 6.640, assinado pelo Presidente Lula em 7 de novembro de 2008 que modifica o Decreto nº 99.556 de 1º de outubro de 1990 (dispõe sobre a proteção das cavidades naturais subterrâneas). O famigerado e tenebroso decreto permite a destruição por obras de infraestrutura das cavernas e grutas espalhadas pelo país, independentemente de sua relevância ou utilidade pública e com critérios frouxos para qualificar a importância das cavernas, alterando vergonhosamente a proteção jurídica ao patrimônio espeleológico brasileiro e provocando protestos de cientistas e ambientalistas.
A Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE) abriu fogo contra a medida e publicou um manifesto que já conta com o apoio de 194 entidades nacionais e estrangeiras. Em 3 de dezembro do ano passado, a SBE solicitou ao Procurador Geral da República, Antônio Fernando Barros e Silva de Souza, que ajuizasse uma ação no Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade do cavernoso decreto. Em 10 de março de 2009, o procurador protocolou peça inicial de Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin nº 4218) que pretende declarar as alterações inconstitucionais, levantando questões como a não observância de debates democráticos e plurais na arena legislativa, a ilegalidade da forma legislativa adotada para tratar do assunto e alegando que apenas uma lei, não um decreto, poderia modificar tão drasticamente o regime de proteção das cavernas. Para o procurador, o decreto “toma para si o papel de traçar o regime de exploração desses espaços, adotando critérios não-determinados pela comunidade científica para, pretensamente, eleger os sítios que devem ou não ser preservados”.
A decisão desta ação impactará diretamente na proteção de cavidades naturais brasileiras já que vários empreendimentos apresentam em seus pedidos de licenciamento ambiental áreas de impacto sobrepostas a áreas de cavidades. Há mais de dois anos, por pressão de empresas, sobretudo mineradoras e hidrelétricas, que vêem nas grutas um empecilho à instalação e expansão de seus empreendimentos, o Ministério de Minas e Energia (MME) e o Ministério do Meio Ambiente (MMA) vinham negociando a alteração do Decreto nº 99.556, que tem sido a “pedra no sapato” de empreendimentos como a usina hidrelétrica de Tijuco Alto, no sul de São Paulo, e à exploração de minério de ferro em Carajás, no Pará. Para técnicos do Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração), o novo decreto trará avanços já que essa indefinição, que dura anos, afastou investimentos estrangeiros do país.
O caso mais conhecido é o da Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto, que, se construída, afetará direta ou indiretamente 52 cavidades naturais subterrâneas, 59 feições secundárias, quatro sumidouros e oito ressurgências. A Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto (UHE Tijuco Alto) é um empreendimento planejado pela Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), uma das empresas do Grupo Votorantim, para aumentar a oferta de energia elétrica para seu complexo metalúrgico localizado na cidade de Alumínio, antiga Mairinque, no interior de São Paulo. A localização da UHE Tijuco Alto está prevista para o alto curso do rio Ribeira de Iguape, na divisa dos Estados de São Paulo e Paraná, cerca de 10 Km a montante da cidade de Ribeira (SP) e Adrianópolis (PR), , nas coordenadas 24º38’58” de latitude Sul e 49º02’50” longitude Oeste, e a aproximadamente 333 km de sua foz, no complexo Estuarino-Lagunar de Iguape-Cananéia-Paranaguá.
O local de implantação do empreendimento fica na região do rio Catas Altas, aproximadamente 4 km a montante da foz do mesmo. A casa de força está situada na margem direita, do lado paranaense, imediatamente a jusante da barragem e o vertedouro na margem esquerda, do lado paulista. Ao lado de Tijuco Alto, a Companhia Energética do Estado de São Paulo (Cesp), tem planejadas mais três usinas hidrelétricas para serem construídas ao longo do rio - Funil, Itaóca e Batatal. Estariam a jusante de Tijuco Alto.
As cavernas da Região Amazônica também preocupam os ambientalistas. Só na região de Carajás, no Pará, onde atua a Vale, especialistas em espeleologia patrocinados pela própria companhia descobriram mais de 1.000 cavernas que, segundo a empresa, impedem a exploração mineral.
O decreto tenta estabelecer algo inédito em nível global, classificando as cavernas e grutas por critérios de relevância e organizadas em quatro níveis, máximo, alto, médio e baixo, levando-se em conta critérios ecológicos, paleontológicos, religiosos, cênicos e arqueológicos. Como se vê, uma missão multidisciplinar para lá de trabalhosa, mas que nem assim aos olhos do governo inspirou participação científica. Discussões sobre a classificação de relevância considerando todos esses atributos ainda estão muito longe de um consenso. Estabelecer esses parâmetros é muito difícil. Às vezes uma caverna não é considerada relevante do ponto de vista cênico, mas para diversidade de fauna é importantíssima. Não existem modelos matemáticos para tentar mensurar e classificar as cavernas.
Dentro de alguns dias termina o prazo dado ao Ministério do Meio Ambiente para ouvir setores da sociedade sobre a proposta. Mas a negociação vem sendo dificultada pela Casa Civil, que vem jogando a área ambiental para escanteio e, basicamente, só quer considerar as cavernas intocáveis se elas forem monumentais, isto é, se tiverem características excepcionais, como a maior do país, ou características biológicas únicas, por exemplo. Assim, apenas as grutas e cavernas de relevância máxima seriam protegidas. As outras que se encontrarem classificadas nos outros três novos critérios, poderão ser alteradas, passando a ser vistas como passíveis de sofrerem impactos, claro, devidamente compensados com dinheiro dos empreendimentos como reza a cartilha do licenciamento. Avaliações iniciais indicam que esse “resto” (que corre o risco de desaparecer) equivale a nada menos que 80% das cavernas brasileiras, estimadas em cem mil pelo governo, poderão ser destruídas desde que exista autorização por parte dos órgãos ambientais. Desse total estimado, apenas 7.300 estão identificadas e relativamente mapeadas. A nova norma proposta permite ainda que grutas e cavernas com "alta relevância", poderão ser destruídas desde que o empreendedor se comprometa a preservar duas similares. Formações com "média relevância" podem ser destruídas desde que o responsável pela obra financie ações que contribuam para a "conservação e o uso adequado do patrimônio espeleológico brasileiro", sem especificar quais. Já cavernas com "baixo grau de relevância" poderão ser impactadas sem contrapartidas.
Segundo os especialistas, essas cavernas guardam registros do passado, trazem informações nos campos paleontológico, arqueológico, biológico e geológico. Cada uma é como um livro. A partir de alguns estudos, por exemplo, foi possível descobrir se chovia mais ou menos na região em determinado período. Isso é uma chave para entender questões como o aquecimento global. Lembram também, que a análise sobre a importância de cavernas existentes em áreas onde se pretenda instalar qualquer empreendimento, deverá ser feita por consultores ambientais pagos pelas empresas, o que pode gerar pressão para laudos favoráveis ao interesse econômico. Destacam ainda, que não existe nenhum indício de que as cavernas estejam atrapalhando qualquer setor da economia brasileira, e em relação ao setor mineral, este tem aumentado sua produção a cada ano.
O novo decreto é flagrantemente inconstitucional, pois deixa descoberto um patrimônio que pela Constituição pertence ao povo brasileiro e que agora pode ser destruído por qualquer mineração de calcário, hidrelétrica ou condomínio residencial. Está mais do que claro que o decreto visa, principalmente, beneficiar setores econômicos, como as construtoras e as mineradoras, que alegam que as cavernas e grutas dificultam a exploração do solo. Nada mais é do que um pretexto para a eliminação de obstáculos naturais no caminho dessas obras. E, em se tratando de caverna metida no meio do mato, áreas de difícil acesso, quem vai fiscalizar os critérios que determinaram a sua destruição? Querem cada vez mais facilidades para dilapidar a nação. Querem normas fáceis de ser cumpridas para legalizarem suas devastações e agilizarem suas ações, com isso evidentemente, facilitando cada vez mais o objetivo maior: o lucro. O pior de tudo, com o aval do governo.
Sabe-se que o envolvimento de pesquisadores na discussão foi mínimo. Sabe-se também que não é possível entrar em uma caverna, sair e, em questão de minutos, ter uma avaliação precisa de um ambiente tão complexo. Estudos mais aprofundados são necessários. Sem esses estudos, a decisão de estabelecer quais poderão ser impactadas será tomada sem critério algum. Segundo os espeleólogos, o conceito de relevância precisa ser mais trabalhado, com base científica e não política ou econômica e, além da participação dos pesquisadores, seria bem plausível que audiências públicas fossem promovidas para envolver a sociedade nessa discussão. Se esse decreto nefasto não for revogado ou seriamente aperfeiçoado, seremos responsáveis por uma ameaça sem precedentes ao meio ambiente e ao patrimônio cultural brasileiro.
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